quinta-feira, 27 de janeiro de 2005

Contratempo

Havia uma falta de inteligência latente naquele olhar. Uma vaga sensação de frio percorera minha espinha ao encarar aqueles olhos vazios e nada mais faria diferença então.





Um carro bloqueava a esquina e eu não pensei mais em correr, e o mesmo vago frio que percorera minha espinha agora dava choques em minhas pernas - como se o sangue me abandonasse. Mas o que ele quereria?





Olhei em meu pulso o relógio de titânio, prata com dourado que ganhei de meu sogro como presente de casamento, e que minha esposa insistia em que eu começasse a usar. Depois que eu ganhara havia um ano e a bateria descarregara sem nunca ter sido usado. Então, minha esposa trocou a bateria em um camelô na Rua da Alfândega e obrigara peremptoriamente que o dito relógio fosse posto em uso. Do contrário seria caracterizada uma pungente falta de consideração para com seu pai.


Mas que nada. Daí então em diante, aquele objeto passou a ser um transtorno a mais em meu cotidiano. Afora a paranóia de ter que usar o pesado adorno em meu pulso, e daí, sofrer constantemente com o medo de ser assaltadono coletivo, ainda havia outro incoveniente, nunca usara relógio em toda a minha vida, por conta disso, ficava olhando a cada dois minutos para o mostrador (desses modernos!) e comparando o digital com o analógico que ajustei com precisão de maníaco-depressivo, de forma que cada segundo dos ponteiros correspondia exatamente ao mostrador digital com seus intrincados desenhos geométricos.

Pelo menos agora fazia algum sentido! Era uma tentativa de assalto.



- Que Deus me proteja! Mesmo que eu só me lembre dele nestas horas... – pensei olhando para o Corcovado.


Atrasei o passo, para ver se aqueles olhos ignotos desviavam de meu semblante. Que nada. O rosto pétrido se fixara em mim, causando engulhos em meu estômago. E não havia dúvidas que o sujeito me encarava. Nesse momento comecei, num lampejo, a me lembrar de um documentário que assisti no aero-barco que fazia (agora só de barca) a travessia Rio-Ribeira. O programa explicava a forma como podemos identificar, mesmo à distância, um olhar e saber se o mesmo nos é endereçado. O documentário era sobre a beleza! - lembrei. Esse pormenor surgiu quase ao mesmo tempo em que notei como o sujeito era feio.

Tive vontade de rir daquela situação toda, mas, fui são o suficiente para conter esse desejo inoportuno. Queria era sair logo daquela situação e aí sim, rir e muito de minhas próprias paranóias medrosas.

Faltavam poucos passos para cruzar com o sujeiro. Ele estava parado encostado
numa cobertura de ponto de ônibus, mas às costas do abrigo. De uma maneira que dava a entender que fazia qualquer coisa ali, menos estar esperando um ônibus.

Olhando de soslaio, percebi que o sujeito não tinha exatamente o que convém definir como “fisionomia de marginal”, mas isso não aliviou nada a situação. A calça jeans, com sapatos de camurça e a camisa hawaiano/social lhe conferiam um quê mais à la Leão de Chácara do que qualquer coisa.
E o medo crescia, já que minha boca cristalizava ácida e o suor gelava minhas costas.

Cheguei ao ápice da proximidade. Cruzei à noventa graus de onde o sujeito estava e mais dois passo me aguardavam para a certeza de que estaria libertado.

Um...

Dois...

Fácil... respiro.
Aperto o passo.

- Christian!

Como ele sabe meu nome? – penso.

- CHRISTIAN!

Agora parei, e o sangue voltou a correr pesado em minhas veias, e a boca e o suor...

Virei-me devagar.

- É comigo? – indaguei como se não soubesse a resposta.

- É. Venha aqui por gentileza.

Essa última frase surgiu com um tom entre o cordial e o irônico, mas foi clara o bastante para não ser contestada. Com um segundo de reflexão, decidi ir adiante e enfrentar, afinal, um sujeito que sabia meu nome e me chamou com algo próximo à educação merecia uma tentativa de confiança.

- Pois não? – falei

- Você conhece uma moça chamada Clara?

- Clara... Clara... Maria Clara?

E foi então que tudo veio à tona. Maria Clara era minha amante. Que coisa óbvia! Maria Clara estava ali entre nós. Era o fio condutor da pendenga desde o início, e imediatamente me tornei muito, muito pequeno...

Conheci Maria Clara na faculdade, ou melhor, tomei conhecimento de sua existência na faculdade.
Intervalo entre as aulas, vi seus cabelos castanhos e suas costas esguias, contidas em um pullover de tricô e uma calça de elanca. Fiquei olhando e olhando enquanto fumava meu cigarrinho do intervalo, fazendo cara de filme americano.

Um sujeito conversava com ela (não esse!), e então ela virou com seu sorriso espontâneo que me fez perder o limite da tragada do cigarro. Não sei se fiquei tonto com o tabaco, com a visão angelical de Maria Clara ou com os dois. Mas nem me percebeu.

O sujeito que estava conversando com ela, disse que não conseguia telefonar para ela e tal e coisa, e ela passou o telefone para ele em voz alta. Não tão alta assim, mas o suficiente para que eu pudesse ouvir.

Voltei para a sala de aula.

Aula vai, aula vem.
Matemática é muito nobre, mas não se justifica. Anotei o telefone dela e fui para casa. Não sei como decorei tão rápido o número, menos ainda como ele não se perdeu na minha cabeça durante a hora e meia de aula que tive a nobritude de assistir.

Cheguei em casa. Banho. Janta. TV. E Telefone. Lembrei do telefone, peguei o caderno e liguei o número que tinha apanhado na aula.

- Alô.

- Alô. (Voz feminina, mas nada jovial)

- (...)

- Gostaria de falar com quem?

- Boa noite minha senhora. Aí é 6549-8451?

- Sim meu filho. Quer falar com quem?

- Com sua filha.

- Quem deseja?

- Um colega da faculdade.

- Um momento. Claaaraaa! (ouvi distante).

Nesse instante, fiquei muito sem ação, em breve estaria falando em um telefone sem fio com uma moça que não conheço, escondido na copa de minha casa na Ilha do Governador enquanto minha esposa com um barrigão de grávida cochilava no intervalo da novela. Me senti um Judas. Mas não desliguei ainda.

- Alô.

- Oi Clara.

- Quem é?

- É Christian.

- Christian? Christian?

- Calma mocinha, você não me conhece. Pelo menos não saberá associar o nome à pessoa. Eu acho.

- Então porque eu deveria estar falando com você? – ela disse isso com um sorrizinho na voz.

- Não sei se você deveria estar falando comigo. Mas não se preocupe que eu não sou nenhum pervertido. Além disso sou colega da turma de Matemática III.

- Ah... Então em que posso lhe ajudar? Algo me diz que não é por causa da aula que você está me ligando.

Pensei em como ela me sacou depressa, e não se incomodou com minha ridícula e manjada cantada de telefone.

- É verdade. Não é por causa da aula que eu te liguei...

- Então o quê?

- Liguei só pra encher a tua bola. Eu te achei muito bonita. E por um acaso do destino eu gravei seu número quando você passava para outro cara.

- Obrigada pela parte que toca. – achei essa frase horrível – Mas eu tenho namorado.

- Eu imagino que sim.

- Então porque cargas d´água me ligou?

- Liguei porque mulheres como você já nascem com namorado, e o que seria de nós, homens, se não houvesse a traição?

- Seriam uns infelizes. – senti o sarcasmo no tom, mas gostei da provocativa.

- Certamente. Que tal tentar alegrar um infeliz colega de fauldade.

- Não sei... você parece meio maluco.

- Quem não é?

- Eu.

- Me engana.

Ela riu dessa última frase, e foi aí que senti que havia ganho a moça. Enfim, mais um pouco de papo de elefante e marcamos para sair. Encontraria com ela em Copa, para ir ao cinema.

Em seguida me lembro de nós dando um amasso violento no Roxy durante uma seção de um filme infantil que não tenho idéia de qual o enredo, personagens ou qualquer outra vaga lembrança que possa me rememorar o titulo do filme.

Na verdade ela não era mais nem menos bonita que qualquer outra patricinha da faculdade, mas, de fato, eu cria na possibilidade de amor à primeira vista com tanto cinismo quanto creditava minhas parcas economias ao FMI. Em suma, só remetia a idéia de amor à primeira vista como uma boa desculpa para os incautos que casavam cedo.

Assim, arranjei uma sarna para me coçar.

- Exatamente, malandro, Maria Clara, o que é que tú arrumando com a minha mina?

- Nada de mais... – menti por instinto de defesa.

- Tú é um cretino mentiroso. Ou melhor era.

Santa ingenuidade. Eu deveria estar cansado de saber que patricinha do Leblon tinha que ter um namorado barra pesada. Pelo menos no histórico.


Diante das opções que a situação me oferecia, recorri ao recurso mais óbvio. Corri.

Ao me aproximar da esquina da Rua com a Bartolomeu Mitre, percebi com a aproximação que o carro que fechava a esquina era da polícia. Como não me restava mais nenhuma dignidade, botei a boca no mundo:

- SOCORROOOOOOOO!!

Algo muito rápido aconteceu, enquanto os meganhas saíam da viatura, atirei o relógio longe, enquanto o corno corria atrás de mim. Gritei mais alto ainda:

- LADRÃÃÃOOO!!!

No momento seguinte os guardas estavam com as armas apontadas em minha direção, algo assustador para
quem não está acostumado, mesmo morando no Rio. Tive que refrear minha corrida desabalada. Virei para trás para ver a reação do meu perseguidor, mas não houve tempo para me preparar para o que estava por vir. POW. Tomei um soco certeiro no pau do nariz e o melado escorreu grosso. Em um segundo estava com a camisa molhada se sangue e os olhos completamente marejados de lágrimas.


- Parado aí vagabundo – ouvi um dos guardas gritando enquanto o outro algemava o sujeito.


- Ele queria me roubar. Como viu que perdeu me agrediu...


- Esse cara está comendo minha mina.

Escutei o som seco de uma porrada na cara do cara.

- Cala a boca, pinta brava, tú tá em cana.

Obviamente agora eu estava em melhor situação, os policiais acreditariam em qualquer coisa que eu disesse. E conseqüentemente ignorariam qualquer tentativa de argumentação por parte do agressor.

- Qual é o teu nome vagabundo?

- Ricardo. – destino irônico - pensei quase rindo, o cara se chama Ricardo!


- Cidadão. Quer prestar queixa? – o guarda me perguntou.


- Não. Faça o que quiser com ele, eu só quero ir embora.


- Mas o senhor tem que ir para um hospital.


- Não eu estou bem. Vou num particular mesmo.


Enfim, estou eu num ônibus, com a cara partida ao meio, a camisa rubra de sangue pisado, com todos
os passageiros me olhando.


Chego em casa, toco a campainha. Minha esposa abre a porta e me vê, nesse estado, em petição de miséria.


- Meu Deus, meu amor, o que aconteceu?

- Nada meu bem, tentativa de assalto...

- Mas você está péssimo... parece um chouriço, o que te roubaram

Nesse momento, olhei para a imagem do Cristo, muito longe, no Corcovado.

Respondi:

- Só o relógio.

Físicas

Realizar é enaltecer
a insignificância
a inoperância
a natureza estática da vida

Diante de tal acolhida
fico inóspito
pensante, insofismável
sinto o dedo encalacrado na ferida

Puxo o sono de meus ombros
Jogo sobre o joelho esquerdo
subo para o maquinário insano
operário eu sou em meio aos escombros

a escoliose emana o eu impuro
e sinto a pena escarnecer a fúria
desço o maquinário imberbe
e volto ao sono obtuso mútuo

acompanhado estou de novo e vivo
realizo a falsa factível força
inoperando naturalmente estico
a estática e enalteço a física